Sobre incalculabilidades e surpresas
Era seguro. Sabia aproveitar a vida. Teve tempo
para escolher o futuro. Tinha agora um bom emprego, a oportunidade de conhecer
cidades diferentes em seu país, mas não sabia o que era a saudade. A namorada,
que o amava tanto, fonte de sua segurança, estava sempre a sua espera.
Portanto, não precisava da saudade. O que amava era a liberdade. Ah... como
amava a liberdade! Não entendia de barcos, mas sentia-se como um marinheiro:
tinha a quem enviar cartas e um amor em cada porto. Conhecia muitas cidades em
seu país. E sabia-se feliz assim. Só que se esqueceu do destino. Este, irmão
mais novo do acaso, que vive pregando peças. E ele era seguro. Seguro de si,
seguro das escolhas que fez e seguro, muito seguro de que não era desses,
feitos para amar. Mas esqueceu-se, verdadeiramente, do destino. Que, por acaso,
o pôs muitas vezes a voltar á cidade aonde chegou menino, recém-jogado á vida e
saiu homem administrador de seu fado. E, por acaso, ali entrou em sintonia com
uma bela. Acreditava, sem pretensões, ser mais um amor de porto.
Travessuras do destino á parte, a cada vez que voltava á sua segunda cidade (a
primeira era onde morava; a segunda, onde amava), feito onda de rádio,
sintonizava- se à sua bela. Já a chamava de sua, já a apresentara aos velhos
amigos do lugar onde amava, estava seguro. Não era desses, feitos para o
sentimento. E sabia-se feliz assim. Principalmente por que previa que se os
olhos não veem o coração não sente. Ainda tinha quem recebesse as suas cartas.
Dizia a quem o caçoasse: “não duro mais um ano, ainda me verá casado com
ela!" E como amava a liberdade! No entanto, não contava com o tempo. Este,
que intensifica os sentimentos ou os dispersa, conforme a sua vontade. Verdadeiramente, não contava. Tanto que o tempo resolveu testar sua força. Não
era seguro? Fê-lo apaixonar-se por sua bela. E ele, seguro, entregou-se ás
delícias da paixão qual um adolescente. Não era desses. Tinha o controle de seu fado. Era bom,
sentir-se vivo. Sabia aproveitar a vida. E como era amado!
Ainda que tivesse se esquecido do destino, esse
resolveu lembrá-lo de que, quanto mais alto o degrau, maior a queda. Achou que
era muito amado, o invejoso destino. Resolveu tirar- lhe um pouco de amor,
entregar a quem estivesse mais desprovido. Sabia que ele conhecia muitas cidades.
Então, tirou de onde ele tinha mais amor, de onde mais lhe sobrava. Agiu.
Quando sua bela ignorou- o, ele, controlador de sua sorte, sem
sentimentalidades, amante da liberdade, enxergou-se com os olhos marejados.
Sentiu seu coração partir. Ele, que tinha tanto medo do amor, tanto medo de
sofrer por amor, que esquivou do amor o quanto pôde, viu-se apaixonado e com o
coração partido. Não tem quem partilhe sua dor. Não pode perder a receptora de
suas cartas. Já disse que irá se casar com ela. Não pode perdê-la. Acha que a
ama. E, calado, implora para que o tempo decida o fazer esquecer de sua bela
surpresa. Sabia: era bom, sentir-se vivo.
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